Ascese e a Guarda do Coração
A Filocalia abre um caminho de liberdade. Ela não detalha as observâncias da ascese, mas extrai o sentido desta.
Ascese significa “exercício”, “combate”, “o combate interior, mais duro que a batalha dos homens”, dizia Rimbaud.
A ascese cristã não é, contrariamente a um preconceito tenaz, uma questão de masoquismo e de mortificação. “Não nos é pedido que arranquemos de nós e neguemos as atividades naturais da alma, mas que as purifiquemos”, diz Orígenes. Ou antes, seu verdadeiro objetivo é o de mortificar em nós a morte e vivificar a vida. Trata-se de eliminar ou de metamorfosear os germes da morte que parasitam nossa existência, a fim de deixar crescer em nós a vida de Cristo, o ímpeto do Sopro, “que dá a vida”, as forças da ressurreição que libertam nossa verdadeira natureza.
A ascese é uma “física do corpo de glória”, ela permite uma visão transfigurante do universo. É uma marcha da cruz em direção à ressurreição, da morte para a não-morte, ou seja, para a alegria pascal. Ela transforma o “corpo de morte” em corpo litúrgico, corpo de celebração, corpo-igreja como diz Máximo o Confessor em sua Mystagogia, igreja cujo coração-espírito constitui o altar. Ela nos liberta “deste mundo” como rede de hipnoses e de ilusões para nos fazer descobrir o mundo de Deus, esta linguagem que deve se tornar diálogo, estes “vivos” a quem devemos “nomear”. Ela derruba o “muro da separação” entre os homens e também entre as coisas e nós, este muro opaco e impuro de que falam Hipólito e Sartre. Cada rosto, cada pedra e até os veios e os nós da madeira sobre minha mesa se tornam caminhos de luz. Como disse Jacó depois de seu sonho, “este lugar é santo e eu não sabia”, por toda parte se ergue a escada dos anjos. A ascese alivia o olhar, seca a concupiscência, permite ver a beleza de uma mulher ou ouvir músicas profanas com maravilhamento e gratidão.
A ascese se define como jejum, castidade e vigilância.
Num sentido geral, o jejum é a limitação voluntária das necessidades para devolver o desejo ao seu impulso natural, ou seja, para Deus e para a criação de Deus. O jejum exorciza as duas “paixões-mãe” que são, como dissemos, a avidez e o orgulho. As expressões populares “mastigar qualquer coisa”, “o que cai sob os sentidos” sugerem nossa relação mortífera com o mundo. O jejum nos liberta das imagens carnívoras, nos ajuda a descobrir a infinita profundidade dos seres e que cada um merece atenção e respeito. É a um tempo retiro e abertura, leveza interior e acolhimento.
Bem entendido, o jejum de alimentos não tem sentido se não estiver ligado ao “jejum de paixões”. É preciso aprender a jejuar do amor ao poder, do fascínio pelas riquezas, dos raciocínios vãos e das “palavras vãs”. E, sobretudo, da maledicência, que tantas vezes os jejuadores de alimentos praticam de bom grado.
Podemos dizer que hoje em dia o jejum se situa no inverso da publicidade, que tende a investir (e portanto a ocultar) o desejo de infinito do homem na multiplicação indefinida das necessidades. Também ao contrário da fabricação do imaginário por simulacros, as imagens, os ruídos incessantes de uma cultura midiática que povoa de sonhos pré-fabricados nosso sonambulismo e jamais deixa lugar ao silêncio.
Ao jejum está ligada a castidade que é a unificação da alma e do corpo no impulso de comunhão. As forças inicialmente caóticas e dispersantes da vida são pacificadas e se integram numa relação fiel: ou bem segundo a verdade do amor humano – pois não devemos imaginar que a via filocálica seja reservada aos monges: Dumitru Staniloae, mestre de obra e testemunho (até a prisão) da Filocalia romena, era casado; ou bem, e mais habitualmente, para o monge, com a consumação do eros no agape divino, de sorte que os outros, para ele, não passem de rostos e que ele esteja “separado de todos e unido a todos”. Jejum e castidade (que pode ser vista como um jejum no qual o desejo é transfigurado) favorecem a vigília, a espera vigilante do Noivo que vem no meio da noite, iluminando de um modo pascal as trevas, Logos que faz flamejar como uma sarça ardente os logoi das coisas, suas essências espirituais. Donde, entre os monges orientais, a prática do sono interrompido e das vigílias noturnas (que também são parcialmente litúrgicas). A vigília, que é vigilância, atenção, choque de maravilhamento fora de qualquer torpor, é especialmente celebrada pela Filocalia, obra, como o sublinha o título, elaborada pelos “Padres népticos”, do termo nèpsis que significa vigília.
Numa forma mais aguda de ascese, os “Padres népticos” praticam a “guarda do coração”. Atravessando o terreno pantanoso da inconsciência, que o separa daquele, o intelecto se separa do fluxo psíquico de pensamentos, imagens e associações que o atravessam sem cessar. Logismoi que ele esmaga, como os “filhos da Babilônia” do salmo, contra o rochedo do Nome de Jesus. Surgindo do infraconsciente, os “pensamentos” devem ser perscrutados antes que se consolidem e cancerizem: sua carga obsessiva é desintegrada pela invocação acelerada do Nome de Jesus (ou simplesmente o apelo ao Kyrie eleison), seu nó psíquico oferecido como um jovem animal de sacrifício, como diz Marcos o Asceta. A um “pensamento” ambíguo santo Isaac o Sírio recomenda nem expulsar nem aceitar, mas orar ardentemente até que Cristo “mostre de onde ele vem”. E se preciso for, refugiar-se em Deus, humildemente, pelo Nome de Jesus.
Quanto à percepção – respirar, comer, caminhar, ver um escorpião ou uma serpente – ela deve ser desembaraçada de sua carga de temor ou de concupiscência, de toda interpretação complexa, e reconduzida à simplicidade imediata da sensação que o Nome reveste e abençoa. É preciso, com efeito, “circunscrever o incorpóreo no corpóreo”, sempre com o mesmo objetivo de uma consciência da consciência, à luz da ressurreição. E o corpo é a cela estreita do hesicasta. Assim o coração-espírito decanta como uma água calma. A alma se reveste de silêncio e “o amigo do silêncio se torna próximo de Deus. Em segredo ele recebe a sua luz”.
Para a Filocalia, herdeira sob este aspecto da antropologia bíblica, o coração aparece como o centro propriamente pessoal do homem aonde todos os sentidos e todas as faculdades deste se reúnem e se harmonizam abrindo-se para a transcendência. O coração profundo, propriamente espiritual, do qual o coração físico é como que um símbolo, é investido pela graça batismal. É um abismo de luz, mas que permanece fechado a maior parte do tempo, inconsciente, mais exatamente “supraconsciente” no sentido que a “psicanálise da existência” dá ao termo. No entanto, algumas fulgurações lhe escapam, em especial na infância, e, mais tarde, quando sua envoltória de lama endurecida (o “coração de pedra”) racha sob certas situações-limite ligadas ao amor, à morte ou à beleza. Parece que os ascetas chamam também de “coração” ao abismo sombrio do infraconsciente, este inconsciente a um tempo individual (no sentido freudiano), coletivo e pan-humano (no sentido junguiano), até mesmo cósmico (no sentido que lhe atribui o filósofo romeno Lucien Blaga). Daí as expressões que foram reprovadas nas Homílias Macarianas, mas que reencontramos em Dostoievski, sobre o coração como campo de batalha entre luz e trevas. Se chegarmos a entreabrir e depois abrir o coração superior, a penetrar cada vez mais profundamente em suas “moradas” (que sem dúvida correspondem às “estações” da mística sufi), de um lado o intelecto se iluminará (“é do templo oculto do coração aonde habita Cristo que o intelecto recebe os bons e belos impulsos que irão transformar toda a nossa existência”), de outro lado esta luz atingirá o abismo do coração inferior, purificando-o, levando-o à consciência e, portanto, à consciência do perdão, e a partir daí começará a transfigurar também tanto o corpo como o ambiente social e cósmico.
A Filocalia é dominada pelo pensamento de Evagrio Pôntico, que coloca a ênfase no nous, quanto ao intelecto na sua dimensão espiritual. Mas ela também é penetrada pela sensibilidade macariana (através da versão de Simeão Metafraste) que vê no coração o órgão último do conhecimento, um conhecimento inseparável do amor. O acordo entre estas duas perspectivas se faz pela descoberta de que a “essência” do conhecimento reside no coração, enquanto que o nous é sua “energia”. Este recurso ao vocabulário aristotélico não deve esconder a vitória da concepção bíblica sobre um certo intelectualismo grego. No interior do “coração” iluminado pelo “raio” do Sol divino, a racionalidade da cabeça, o ardor do peito e o desejo das entranhas se equilibram e se transformam, abrindo-se para o infinito.
Olivier Clement - Introdução à Espiritualidade Filocálica